O autoritarismo defendido por grupos católicos de extrema direita e a recusa às instituições ou até mesmo à democracia está vinculada à ideia de que “se a democracia permitiu, primeiro, o aborto e depois todo o resto, eutanásia, casamento de pessoas do mesmo sexo, leis para os grupos LGBTQ, então, é uma democracia que não tem sentido, que não vale a pena defender, que deve ser, de fato, atacada”, explica o historiador
A constatação de Massimo Faggioli, doutor em História da Religião e professor de teologia e estudos religiosos da Universidade de Villanova, na Filadélfia, Estados Unidos, é a mesma do pregador da Casa Pontifícia, Fr. Raniero Cantalamessa, OFMCap, manifesta em sua pregação na Basílica de São Pedro, para o Papa Francisco e a Cúria na Sexta-feira Santa deste ano: "Os católicos não estão divididos hoje em torno de diferentes doutrinas da Encarnação, mas em questões sociais e políticas".
Isso tem sido particularmente visível nos EUA, que se tornou, segundo Faggioli, "a sede de oposição ao papa", onde grupos políticos e católicos vinculados à extrema direita se aliaram em defesa do nacionalismo. "Houve até movimentos e partidos em alguns países que investiram na ideia de que o catolicismo é um canal poderoso para reviver o nacionalismo ou ideias etnocêntricas. Esse é um problema real; não é algo que pode afetar apenas os especialistas, teólogos ou cientistas políticos, mas algo que realmente está mudando a forma como nossas Igrejas estão sendo estruturadas ou como são percebidas ou como se percebem", adverte.
No final de setembro deste ano, Massimo Faggioli participou do "Ciclo de estudos: Populismos, autoritarismos e resistências emergentes", promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU.
Na palestra intitulada "Francisco, Biden e os radicais de direita. Relações entre a polarização na Igreja e na Política", a qual reproduzimos a seguir no formato de entrevista, ele apresenta paralelos entre a crise da democracia e a da Igreja católica, e explica como a política e a Igreja, mas também as religiões em geral, estão sendo cooptadas por grupos autoritários que defendem o nacionalismo.
"Se olharmos para o mapa global, vemos alguns desses movimentos de direita, por exemplo, nos EUA, nos últimos dez, 15 anos, e também em outros países, com outros nomes e outros líderes. Na Europa, podemos mencionar a Hungria, a Polônia e, na Itália, vamos ver o que vai acontecer daqui a dois anos, mas claramente esse movimento também está lá, assim como na Ásia, nas Filipinas, se quisermos falar de países católicos. Mas o nacionalismo também está moldando outras entidades religiosas, como na Índia, com Narendra Modi [primeiro-ministro indiano]. Logicamente também podemos olhar para os países latino-americanos, onde a religião se tornou parte de uma certa narrativa contra a globalização ou o liberalismo, de diferentes formas. Então, esse não é apenas um problema ocidental ou europeu, mas, sim, global", constata.
Para Faggioli, o atual período da história da humanidade também expressa um sinal da crise da cultura de um projeto de direitos humanos cosmopolitano. "O que aconteceu nos últimos anos? Podemos ver o início, em 2014, 2015 e 2016, de uma nova onda de autoritários sendo eleitos em alguns países importantes nas Américas, na Rússia, na Ásia. Além disso, houve o Brexit e também a eleição do presidente Trump em 2016, a ocupação e retirada catastrófica dos EUA do Afeganistão, que foi muito mais do que um evento militar. Isso tudo diz algo sobre a crise dos liberais nas duas versões: a neoliberal e o projeto progressista neoliberal. É um sinal de que há algo que tem que ser reconcebido e repensado a respeito de que tipo de mundo queremos no Ocidente ou o que o Ocidente realmente quer". E acrescenta: "Esse é um problema que realmente afeta o catolicismo".
Massimo Faggioli (Foto: Reprodução | Youtube)
Massimo Faggioli é doutor em História da Religião e professor de teologia e estudos religiosos da Universidade de Villanova, na Filadélfia, Estados Unidos. Também é editor colaborador da revista Commonweal. Destacamos os seguintes livros, de sua autoria: Vaticano II: A luta pelo sentido (Paulinas, 2013); True Reform: Liturgy and Ecclesiology in Sacrosanctum Concilium (Liturgical Press, 2012); e, em espanhol, Historia y evolución de los movimientos católicos. De León XIII a Benedicto XVI (Madrid: PPC Editorial, 2011).
IHU – Que paralelos há entre a situação da política e a da Igreja nos dias de hoje?
Massimo Faggioli - Vou falar sobre este momento no tempo e na nossa história que é marcado por uma certa desordem política, com alguns paralelos com a situação da Igreja católica e a política global em alguns dos países mais importantes para a Igreja católica no mundo.
Quero começar com o que aconteceu nos EUA, nesse país em que vivo desde 2008, em 06-01-2021, um ataque, uma invasão de apoiadores de Trump [ao Capitólio] e, nesse período, durante a eleição de Joe Biden, em novembro de 2020, e seu acesso ao poder em janeiro de 2021. O que aconteceu foi uma tentativa de subverter a ordem constitucional nos EUA e também a incorporação visual de alguma coisa que vinha acontecendo já há algum tempo no país, não apenas na política, mas também na Igreja católica.
Vocês sabem que desde a eleição do Papa Francisco, em março de 2013, a sede de oposição ao papa tem sido os EUA. Ela se dá não apenas por uma grande parte dos bispos americanos, mas também no mundo intelectual católico e entre os empresários. O que aconteceu em agosto de 2018, com o manifesto [do ex-núncio Carlo Maria Viganò], foi claramente uma tentativa de retirar o Papa Francisco, com falsas acusações. Essa tentativa foi silenciosamente apoiada por alguns bispos americanos. Foi o equivalente ao que aconteceu no país em 06-01 deste ano, quando vimos slogans semelhantes, que são típicos desses que querem rejeitar o Papa Francisco e daqueles que rejeitaram a presidência do Obama, que queria trazer a nossa Igreja e nosso país de volta. Obama e o Papa Francisco eram considerados aliados, não pertencentes a atual ordem sociopolítica.
Então, aqui tem alguns paralelos que surgiram nas conversas políticas e católicas nos últimos anos e alguns elementos que claramente são identificáveis entre a Igreja e a política. Um deles, é a ideia de que agora, na Igreja católica, todo argumento teológico é, instantaneamente, traduzido em uma discussão política que tem a ver com uma ênfase na cultura e na identidade política. Ou seja, os católicos não estão divididos hoje em torno de diferentes doutrinas da Encarnação, mas em questões sociais e políticas. Isso é claramente visível. Nesses últimos anos, surgiu um novo movimento católico tradicionalista em rejeição ao Concílio Vaticano II. Houve até movimentos e partidos em alguns países que investiram na ideia de que o catolicismo é um canal poderoso para reviver o nacionalismo ou ideias etnocêntricas. Esse é um problema real; não é algo que pode afetar apenas os especialistas, teólogos ou cientistas políticos, mas algo que realmente está mudando a forma como nossas Igrejas estão sendo estruturadas ou como são percebidas ou como se percebem.
Se olharmos para o mapa global, vemos alguns desses movimentos de direita, por exemplo, nos EUA, nos últimos dez, 15 anos, e também em outros países, com outros nomes e outros líderes. Na Europa, podemos mencionar a Hungria, a Polônia e, na Itália, vamos ver o que vai acontecer daqui a dois anos, mas claramente esse movimento também está lá, assim como na Ásia, nas Filipinas, se quisermos falar de países católicos. Mas o nacionalismo também está moldando outras entidades religiosas, como na Índia, com Narendra Modi [primeiro-ministro indiano]. Logicamente também podemos olhar para os países latino-americanos, onde a religião se tornou parte de uma certa narrativa contra a globalização ou o liberalismo, de diferentes formas. Então, esse não é apenas um problema ocidental ou europeu, mas, sim, global. Em certo sentido, é um sinal da crise da cultura de um projeto de direitos humanos cosmopolitano, que parte não apenas da cultura católica dos anos 1960, do Concílio Vaticano II, mas também fez parte da era pós-segunda Guerra Mundial.
A Índia que o senhor Narendra Modi tem em mente agora, com o nacionalismo hindu, é diferente, se comparada com o sonho da Índia de Gandhi, que não era centrada no hindu, mas intrinsicamente ecumênica, uma Índia secular, na qual diferentes identidades religiosas poderiam coexistir. Então, o que temos agora no nível político é uma crise de uma forma da democracia e não apenas uma crise de um sistema político, como o do Ocidente, que tem problemas históricos com apresentação exagerada e um sistema bipartidário. A democracia não é mais desafiada pela luta socialista-comunista de classe, mas desafiada pela globalização. E uma forma de [manifestar] o poder é o extremismo que enfatiza culturas e identidades. Nesse contexto, a humanidade está mais sujeita à narrativa dos direitos individuais e muito menos sensível à ideia de que há um bem comum que tem uma identidade compartilhada. Uma reação contra a globalização é a venda dessa ideia individualista do progresso e do direito. Isso explica um pouco a origem do extremismo de direita, que tem novas características. Em alguns países há remanescentes de fascismo, como na Itália, e também de uma cultura de teoria da conspiração, que tem um certo tipo de bode expiatório sobre os judeus e minorias. Então, trata-se de mistura de velhos fatores da cultura de direita extremista e novas formas de reação à crise da globalização.
IHU – Esse extremismo que observa na política também está presente na Igreja católica?
Massimo Faggioli - Vimos que na eleição do Papa Francisco, em março de 2013, instantaneamente, nos próximos dias, ele se deparou com uma reação muito forte vindo da cultura neoconservadora, principalmente nos EUA. Realmente, foi um esforço que refletiu uma conexão muito interessante entre os círculos clérigos, intelectuais e do poder financeiro, que estabeleceram, em alguns países, especialmente nos EUA, uma coalizão, que fez quase tudo para impedir a mensagem do Papa sobre migração, mudança climática, democracia e direitos humanos. De maneira geral, foi uma iniciativa contra a tentativa do Papa Francisco de libertar o catolicismo da ideia de que o catolicismo pode ser apenas europeu ou norte-americano, com algumas mínimas adaptações.
Algo que é indiscutível desse pontificado é o esforço do Papa Francisco de libertar o catolicismo dessa prisão ideológica de que para ser católico a pessoa precisa estar vinculada a uma cultura europeia. Isso encontrou uma forte reação e, repito, foi visível desde os primeiros dias do pontificado e quando o Papa Francisco fala sobre o divórcio, o casamento, o Islã ou meio ambiente. Há uma reação de direita que é desencadeada pela sensação de que o Papa está colocando em risco um alinhamento histórico entre o Ocidente, o Eixo do Atlântico Norte e o catolicismo. Isso coloca o Ocidente em perigo porque o catolicismo é percebido como o pilar, a alma espiritual e ideológica do mundo ocidental.
IHU – Quais são os desafios internos dentro da própria Igreja?
Massimo Faggioli - Há desafios internos, que são mais teológicos. O Papa Francisco é percebido pela cultura de direita como um papa que está continuando a recepção e aplicação da teologia do Concílio Vaticano II – que foi uma cultura teológica que contém, nesse grande evento do início da década de 1960, uma série de reflexões sobre o que significa ser católico no mundo moderno. Por exemplo, uma Igreja católica que aceita a democracia não apenas na Igreja, mas fora da Igreja – mas isso é um outro capítulo. Mas uma Igreja que aceita o princípio dos direitos individuais, especialmente da liberdade de religião, uma Igreja que compreendeu a complexidade de estar no mundo multirreligioso, com diálogo e missão. Nesse sentido, a Igreja católica não pode evitar a tarefa de dialogar com judeus, muçulmanos, hindus e as demais religiões.
O Papa Francisco, desde o início, disse que o Concílio Vaticano II não é algo que foi cumprido e que temos que seguir adiante. Então ele está retomando um certo projeto do Concílio Vaticano II que foi suspenso pelo Papa Bento XVI. Isso gera uma reação de raiva contra o Papa Bento XVI, porque se pensava, erradamente, que Bento XVI era anti-Concílio Vaticano II. O Papa Francisco acelerou esse processo e é um papa que diz que é importante que os católicos tenham a sua própria identidade, que é essencial para o ser humano como unidade, mas a identidade não pode vir às custas do diálogo com os outros. Esse é um dos fatores que torna o Papa Francisco uma oposição ao surgimento ou ascensão da cultura de radicais de direita, que faz uma defesa dos nossos valores de uma forma ideológica.
Há paralelos entre as formas de reação da extrema direita na política e na nossa Igreja. É sábio retroceder um pouco e dar uma olhada na história dos últimos 50, 60 anos, para ver que essas duas trajetórias têm algo em comum ou muito em comum, na verdade. O primeiro ponto é este: ambas, tanto a Igreja quanto a política, nacional e globalmente, não estão mais na década de 1960. Não estamos mais na época em que a ideia de conquista da democracia é um negócio que já está feito. Essa foi uma sensação na Igreja, pensando teologicamente, e também em outras democracias que tiveram que se reconstruir após a Segunda Guerra Mundial na Europa, ou na América do Norte, em função da grande depressão e do New Deal. Em 1960 ocorre um momento muito privilegiado: o sonho de se construir a democracia, os direitos humanos e um mundo que poderia coexistir. Não estamos mais lá. Temos que ter muita clareza a respeito disso. Nesse sentido, há um certo apelo ao Concílio Vaticano II que realmente pode se tornar algo como uma nostalgia, que pode ser até patético se não levarmos a sério que muita coisa aconteceu desde então.
IHU - O que aconteceu desde 1960?
Massimo Faggioli - Bom, alguns fatos bastante básicos: vivemos em um mundo em que o cidadão das nossas democracias não é mais um sujeito domado e dócil. Para entender isso, temos que observar uma série de demandas e descontentamentos com a democracia liberal, que podemos ver nas Américas, na Europa e na Ásia. O problema não é apenas o Islã. Há um novo integralismo na Igreja católica. A ortodoxia, também na Rússia, apoia bastante o sistema autoritário que está estabelecido agora. Aqui há o que um grande pesquisador da religião chamou de “La revanche de Dieu”, a revanche de Deus nos assuntos globais.
Em segundo lugar, é o final da ilusão, após a queda do Muro de Berlim, de que o mundo inteiro vai ser um sistema democrático liberal, onde o capitalismo vai deixar todo mundo contente. Essa era a visão dominante no Ocidente, nos EUA, especialmente após 1989, 1990, 1991. O catolicismo sempre foi mais cético com relação a isso. Podemos ler a Encíclica de 1991 [Centesimus Annus], de João Paulo II, que foi muito claro com relação ao futuro: seria mais complicado do que isso.
Mas a grande questão é o que restou dos sonhos de 1989 e 1991, o que inspirou os liberais no mundo ocidental a dizerem: “Nós derrotamos o comunismo e o mundo agora é nosso”. Essa é uma visão que, após 30 anos, tem alguma coisa a dizer. Lembrem-se da crise financeira na Rússia e na Ásia em 1997 e 1998, do início de uma série de guerras catastróficas no Oriente após 11 de setembro de 2001, da crise de 2007, 2008 e 2009.
O que aconteceu nos últimos anos? Podemos ver o início, em 2014, 2015 e 2016, de uma nova onda de autoritários sendo eleitos em alguns países importantes nas Américas, na Rússia, na Ásia. Além disso, houve o Brexit e também a eleição do presidente Trump em 2016, a ocupação e retirada catastrófica dos EUA do Afeganistão, que foi muito mais do que um evento militar. Isso tudo diz algo sobre a crise dos liberais nas duas versões: a neoliberal e o projeto progressista neoliberal. É um sinal de que há algo que tem que ser reconcebido e repensado a respeito de que tipo de mundo queremos no Ocidente ou o que o Ocidente realmente quer.
Esse é um problema que realmente afeta o catolicismo. O catolicismo, como sabemos, é a mais global de todas as igrejas e comunidades. E, nas últimas décadas, o catolicismo elaborou uma reflexão sobre o mundo global e a globalização. Então, ele é chamado diretamente a dizer algo sobre isso. Mas antes de dizer algo, tem que pensar em algo. Então, isso vai além daqueles atalhos comuns. Uma coisa a dizer é que temos que voltar a 1960 ou 1970, que foi a época do Concílio Vaticano II, onde tudo era ótimo. Outra versão é dizer que temos que voltar ao período pré-Concílio Vaticano II, em 1940, 1950, onde não tínhamos problemas como os de hoje, com bioética, política e questões de gênero – o que é realmente ainda mais delirante e mais ilusório. Isso impõe um desafio muito importante para o catolicismo porque há alguns desafios que são, apenas aparentemente, políticos, mas, são, socialmente, creio eu, teológicos, são questões que são religiosas por natureza.
Uma delas é o reconhecimento de que este mundo não vai ser tão religioso quanto muitos de nós pensávamos na década de 1970, 1980. Quer dizer, a religião é uma força a ser reconhecida. As igrejas institucionais talvez estejam em uma crise institucional ou em um colapso de credibilidade, mas a religião é mais resiliente e está mais sujeita a ser utilizada e canalizada de diferentes formas. Isso é algo que o Vaticano percebe quando olha para fora das fronteiras estreitas da Europa ou da América do Norte. Trata-se de um retorno global entre a conexão da religião e da política, que não é algo que pode ser compreendido facilmente ou claramente a partir de uma mesma maneira na Europa ou nos EUA. Então, realmente há um colapso do que se chama de “consenso liberal ocidental”, que significa basicamente que mais liberdade e mais democracia vai ser algo que vai receber a benção da religião organizada. Esse não é o caso.
Um consenso liberal ocidental sobre os direitos, sobre mais liberdade, mais capitalismo, é algo que realmente fez parte da fascinação do Concilio Vaticano II e é isso que precisa ser repensado. Há também questões sobre a liberdade da religião e a grande realização do Concílio Vaticano II é que nós não somos mais uma Igreja que obriga ou força as pessoas a serem católicas ou penaliza as pessoas por não serem católicas. Nós, católicos, agora reconhecemos o direito à liberdade à religião dos não católicos, mas esperamos, de outras religiões, e do Estado secular também, que respeitem a liberdade de religião de todos.
Na era de ouro da década de 1970, quando o catolicismo abraçou a política, o problema foi lidar com o comunismo e também romper a parede ideológica da Igreja católica contra a democracia. Na década de 1960, não existiam os nossos problemas de hoje, que é uma longa lista que começa no final dos anos 1960, 1970, com a questão do aborto, depois continua com a questão da eutanásia e direitos dos gays. Em alguns países isso é central e foi alguma coisa que deu bastante combustível para os católicos conservadores ou que os empurrou para as mãos do radicalismo de direita. Então, [para eles], qualquer coisa menos a rendição aos direitos LGBT. Essa pauta se tornou algo que teve um papel fundamental na eleição de Trump em 2016 e no esforço de resistência à eleição de Biden em 2020.
IHU - Como o catolicismo está reagindo a essa crise de ordem política?
Massimo Faggioli - O que vemos agora tanto na política quanto na Igreja é uma demonstração de desprezo pelas instituições democráticas e eclesiais. Há um ethos antidemocrático porque a democracia é identificada com algo que permitiu culturas morais se afirmarem como parte da legislação. Esse é visto como o terreno para a rejeição da democracia. Como podemos ver nos EUA, é por isso que o antiliberalismo católico americano está sendo tão eficaz.
A ideia é que se a democracia americana é algo que permitiu uma constitucionalização e encolhimento dos direitos individuais, então essa democracia não tem sentido, está esvaziada e deve ser derrubada. É isso que vimos nos últimos anos, de maneira muito clara, como Trump manipulou o eleitorado católico e a forma como o eleitorado católico conservador percebeu e rejeitou a legitimidade da eleição de Biden no ano passado. Então, há uma ideia de que se a democracia permitiu, primeiro, o aborto e depois todo o resto, eutanásia, casamento de pessoas do mesmo sexo, leis para os grupos LGBTQ, então, é uma democracia que não tem sentido, que não vale a pena defender, que deve ser, de fato, atacada. Isso é muito forte e vemos isso no nível do voto dos católicos. Eles expressam as suas visões através dos líderes católicos individuais, mas isso também tem um efeito na Igreja, nessa onda que está tentando redefinir as identidades católicas em termos de opções: “eu sou católico, mas meu catolicismo é dado a partir de uma identidade muito particular que basicamente é uma rejeição da ideia de que o catolicismo é uma grande igreja, que é diverso, que é feito de diferentes pessoas, de diferentes visões do mundo”. A mais famosa é essa ideia de que precisamos redefinir as nossas formas de sermos Igreja, formas que são exclusivas e estão relacionadas ao acesso limitado para outros. Isso vale nessas identidades políticas em alguns países, mas também para a Igreja católica.
Isso significa uma série de coisas que tem grande importância para o que é o significado das instituições na Igreja católica. Uma ideia tradicional e conservadora da Igreja católica é que as instituições estão lá para proteger um certo nível de inclusividade. Na época do Concílio Vaticano II, se achava que dar mais voz para os leigos tornaria a Igreja mais inclusiva, porque se daria mais poder para as pessoas leigas. Isso era na época, mas não é mais necessariamente verdade hoje, porque se olharmos para quem são os proponentes mais focais de uma Igreja mais exclusiva e mais etnocêntrica, veremos que realmente são as pessoas leigas, os líderes intelectuais e políticos.
Outra coisa que vimos foi uma certa perversão ou desvio do que era o projeto do ecumenismo. No momento do Concilio Vaticano II houve uma ideia que conduziu a um mundo onde poderíamos coexistir e dialogar melhor e isso permaneceu no mundo ecumênico, num certo nível. Mas poderíamos ver quais são os efeitos disso em alguns países da América do Norte e nos países latino-americanos em relação às ondas de convergência de membros de uma igreja para outra igreja. Frequentemente, essas convergências ou conversões transmitem uma mensagem política também, significando que não estão a favor dela, mas, sim, contrárias. Podemos ver isso nos EUA, na Igreja católica – não toda –, que tem tido um certo tipo de elite política e intelectual, que foi atraída para o catolicismo, e é vista como um porto seguro para um ponto de vista católico mais hardcore. Isso mudou o alinhamento dentro do catolicismo e algumas pessoas até se tornaram apoiadoras mais fortes de Trump. Então, há uma redefinição do que foram algumas das expectativas futuras do Concilio Vaticano II e do ecumenismo. Vemos, em alguns países, no caso dos EUA, um ecumenismo do ódio. Isso faz parte de algumas conversas eclesiásticas.
Também existe este paralelo na política e na Igreja: claramente uma ansiedade existencial que em parte é conduzida pela crise ecológica. A ideia do futuro é muito incerta. Nós fizemos uma transição do século XX que foi marcada por políticas bastante futuristas: socialismo, comunismo e até mesmo nazismo e fascismo, todas elas com uma ênfase muito forte no futuro, dizendo que o futuro seria de tal modo para tantos mil anos. Se falarmos com um jovem hoje, não vamos mais ter uma ideia forte de como será o futuro para eles. Essa cultura está bastante presente, tem a ver com o presente, com o dia de hoje, com esta semana ou com este ano, no máximo. Isso tem uma implicação enorme para a Igreja, que quer ser missionária e evangelizar em certo sentido a história não apenas no passado, mas a história também do futuro.
Os paralelos entre a crise da nossa política e a da nossa Igreja são muito. Mas eu diria que o mais amplo é este: nós estamos no meio de uma crise colossal de duas grandes entidades que governaram o nosso mundo nos últimos 50 anos. Pelo menos tem uma crise da Igreja e do Estado. Em termos bem simples: a religião não atua apenas na Igreja e a política não atua apenas dentro do Estado. A Igreja e o Estado como nós os conhecíamos são produtos do século XVI. Agora, com a globalização social, política e financeira, essas duas entidades, a Igreja e o Estado, ainda estão lá, mas poucas coisas podem significar a sua importância. A maior parte do que elas tinham nos séculos XVI e XVII sumiu com a globalização e houve uma redefinição de identidades, de valores e relações. Essas duas entidades estão numa crise profunda porque são percebidas como incapazes de responder às necessidades e expectativas, que não são apenas materiais, mas simbólicas, morais. Elas não satisfazem mais ou satisfazem de uma forma completamente insatisfatória. É assim que elas são percebidas. Isso realmente merece um capítulo separado.
Tanto a Igreja quanto o Estado são medidos em termos de ideologia de mercado, ou seja, o que elas podem entregar, e entregar contratualmente, em um determinado prazo, numa forma que seja imediata e que seja legalmente vinculante para as partes. Esse é o contrato e essa é a fase da globalização. Não é mais o capitalismo da versão burguesa, porque o capitalismo burguês tinha um certo sentido de cultura e religião, sempre pervertida, mas tinha um forte sentido da importância da cultura, de se construir museus, escolas, ler jornais.
Essa é a nova fase do mundo global. Não é que seja totalmente ruim, mas também estamos começando a ver como alguns dos aspectos do projeto progressista liberal eram totalmente ilusórios. Podemos ver quão cega a cultura progressista liberal foi nos últimos séculos. Não se pode culpar somente os radicais de direita, trata-se de algo que se refere ao Iluminismo. O que está acontecendo agora está surgindo para nos fazer entender que as velhas receitas não dão mais certo. A era da raiva está eliminando o respeito que existia nas instituições, na política e na Igreja. A era da raiva também é alimentada pelo ressentimento. Na política, por exemplo, com relação à riqueza e ao bem-estar, e na Igreja, para empregar em certo sentido a justiça e, em certos países, com relação à crise dos abusos sexuais.
Tudo isso ficou muito claro nos últimos anos com o Papa Francisco, que é um papa que deixou fluir todas essas energias, até mesmo colocando em risco seu pontificado. Ele deixou claro, penso eu, que essa forma de globalização não coincide com a cultura católica. Há um apego do Papa Francisco com a ideia das instituições eclesiais e políticas, que não pode ser confundida com institucionalismo. E é, em certo tipo, uma resposta ao populismo, que gostaria de se livrar de todas as instituições como tal. Isso [se livrar das instituições] seria um grande favor para aqueles que já estão no poder e não precisam de instituições para proteger aqueles que são pobres e mais vulneráveis.
Em conclusão, acho que há alguns desafios para a Igreja, para os católicos, especialmente, que tem a ver com se deparar com movimentos perigosos, como o extremismo de direita em alguns países. Isso requer uma conscientização, organização e ativismo e uma resposta que a Igreja pode oferecer ou dar mais do que outros agentes políticos do passado, como partidos, sindicatos de trabalhadores, que em muitos países nem existem mais.
Mas o desafio mais importante é visualizar uma incorporação de um certo sentido de poder e autoridade. Creio que esse é o principal desafio porque há uma ideia de que hoje deveríamos substituir nossas instituições de poder por forças de mercado. A proposta é que se nos livrarmos dos velhos símbolos de autoritarismo e poder, tudo vai poder se ajeitar. Acredito que isso é ilusório. Funciona se o seu nome for Mark Zuckerberg, mas se você for alguém que precisa de saúde, de um sistema justo que possa protegê-lo de abusos, de violência, realmente você precisa de instituições. É isto que precisamos combater: a ilusão de que quanto menos instituições houver, melhor. Acredito que isso seja uma forma de idolatria.
Eu não sou um defensor do sistema atual, realmente ele deve mudar radicalmente e, em alguns casos, extremamente, de forma radical e rapidamente. Mas penso também que os católicos têm uma tradição de símbolos, instituições e representações do poder que sempre foram muito eficazes, muito sutis e muito absorvidas internamente dentro da Igreja. Talvez não possamos substituir primeiramente os ministros ou presidentes que são perigosos para nossos países, mas o novo processo que está por começar na Igreja católica vai ser uma oportunidade para enviar um sinal de que na Igreja católica nós podemos, com esse ressentimento e raiva, construir algo que seja visível para as pessoas participarem, ao invés de deixar tudo para os nossos escritórios, para as nossas telas. Fazer isso vai ser um enorme presente dado para os extremismos, poder se expressar com falas suaves ou de maneira mais suave.